Carta: Dois anos do rompimento da barragem de rejeitos da VALE S.A. em Brumadinho/MG: Entre a luta por justiça e os desastres que se acumulam

A temporalidade dos anos que vem e vão, dado o seu caráter cíclico, é significada como uma maneira de rememoração de eventos datados. Apesar de este “calendário” ser hegemonicamente organizado pela razão governamental-cristã, ele está arraigado na sociedade, que, por sua vez, também o significa a partir dos episódios de violência e repressão que cada vez mais se impregnam nela. Rememorados até hoje, os massacres de camponeses em Eldorado dos Carajás (1996) e em Corumbiara (1995) e os rompimentos das barragens da VALE S.A. em Mariana (2015) e em Brumadinho (2019) são exemplos de um sofrimento social encravado na memória coletiva e cujas datas de ocorrência tornam-se símbolos para a ação política e luta por justiça. 

A partir de tal entendimento, nós da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) vimos relembrar o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da VALE S.A. em Brumadinho/MG, ocorrido há dois anos, em 25 de janeiro de 2019, para, assim, reafirmarmos o nosso posicionamento perante este crime.

Os dias subsequentes ao desastre foram marcados por um doloroso processo de assimilação coletiva de que aquele cenário distópico, de terra (e água) arrasada e pessoas soterradas, era a realidade na sua mais crua exposição. Contudo, a urgência da situação não permitia que essa assimilação fosse passiva, afinal, ainda havia pessoas com vida em meio aos rejeitos de minério, além de diversas famílias que perderam casa, terra, renda, familiares, dentre outras coisas, e assim, tornavam-se “atingidas” deste crime.

No dia 27 de janeiro de 2019, nós da AGB, em conjunto a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE), nos posicionamos em nota intitulada “Brumadinho: não foi acidente!”. Nela afirmamos que o desastre era, antes de mais nada, um “crime ambiental de responsabilidade da empresa Vale S.A. – e compactuado por um Estado brasileiro subserviente à lógica do capitalismo neoliberal/neoextrativista – é mais uma violação provocada pela destrutiva submissão dos bens naturais pertencentes à toda sociedade aos interesses empresariais”.

Cabe ressaltar que não houve leviandade alguma em afirmar, logo dois dias depois do desastre – quando ainda havia múltiplas explicações técnicas para o rompimento da estrutura em si –, que “Não foi acidente” e, portanto, a mineradora VALE S.A. enquadrava-se como uma criminosa. 

Primeiramente, porque há um entendimento mais amplo em relação à forma e à desproporção adquiridas pela atividade mineradora: completamente arraigada na fluidez artificial do mercado financeiro de commodities, ela já não conseguiria sequer se adequar às legislações ambientais e normas técnicas criadas (e cada vez mais flexibilizadas) exatamente para legitimá-la e viabilizá-la. Ou seja, para atenderem aos imperativos concorrenciais, as empresas mineradoras acumulam outros desastres diluídos diariamente – seja no campo do trabalho, no socioambiental, no fundiário, dentre outros –, o que muitas vezes também significa o descumprimento da lei, em outras palavras, o crime. Neste caso, como a empresa proprietária da barragem deveria assegurar a  segurança da mesma, as mortes e a destruição causadas pelo rompimento são de responsabilidade da VALE S.A. 

Além disso, afirmar que “Não foi acidente” era replicar um grito por justiça que há três anos já havia sido cunhado, quando do rompimento da barragem da Samarco (subsidiária da VALE S.A.) e que a empresa dizia ter sido um acidente do qual ela não era responsável, buscando, assim, socializar os custos de reparação.

Diante dessa procedência, há dois anos atrás, não tivemos motivos para hesitar em exigir “que a Vale S.A. seja responsabilizada por este crime, além de arcar com o auxílio emergencial a todos os atingidos, com a reparação ambiental da área atingida e reestruturação imediata da seguração de todas as barragens administradas pela empresa”.

Hoje, observa-se que um bizarro conjunto de procedimentos de gestão de “desastres” está sendo construído no entremeio da relação empresa-Estado e, mesmo que a responsabilidade tenha sido assumida, a reparação em sua miríade de aspectos “qualitativos” foi reduzida a valores monetários, permitindo, assim, que uma multinacional do porte da VALE S.A. largue o posto de culpada e torne-se uma negociante ao longo deste processo. É bem verdade que foram feitos repasses pela empresa ao restrito número de pessoas que foram consideradas como “atingidas”. Além disso, tem sido soerguido um certo tipo de estrutura institucional voltada para a reparação socioambiental em diferentes escalas. Porém, o rio Paraopeba continua poluído, corpos continuam sendo procurados e um número considerável de pessoas continua à mercê dessas infindáveis negociações em que o preço da vida e da natureza é discutido por uma cúpula impenetrável.

Enquanto a reparação é adiada, os desastres continuam se acumulando de modo irrefreável – à maneira da acumulação fictícia do capital – em um território onde a atividade mineradora tornou-se incompatível com a própria vida. Essa longa, quiçá eterna, espera pelas respostas jurídico-regulatórias estatais já deu seu recado: para eles, descartável é a vida e inabalável deve ser a mineração. Mas, enquanto houver vida, haverá resistência. Neste dia 25 de janeiro de 2021, nós, da Associação dos Geógrafos Brasileiros, reafirmamos nossa posição:

PELA INEGOCIÁVEL REPARAÇÃO ÀS VÍTIMAS DO CRIME DA VALE S.A EM BRUMADINHO!

PELO DIREITO DE DIZER “NÃO” À MINERAÇÃO!

Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB)

São Paulo, 24 de janeiro de 2021.

 

 

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